sexta-feira, 11 de junho de 2010

Uma ciência para cidadãos

Uma ciência para cidadãos

Hiroshima, Chernobil, catástrofe da usina química Bhopal: o século XX foi marcado por eventos trágicos que semearam a dúvida sobre o papel emancipador da ciência.

Esses horrores, que se acrescentam a outras catástrofes no mundo do trabalho – minas, transportes etc. –, suscitaram um certo desencanto em relação à ciência e à tecnologia. Esse fenômeno traduziu-se em uma escalada da militância antinuclear ou ecologista no Ocidente e pela proliferação de associações em favor de uma ciência cidadã. Na Índia, por exemplo, grupos como o Kerala Shastra Sahitya Parishad esforçam-se para divulgar a informação científica, estimular o espírito crítico da população e obter que os resultados das pesquisas sejam colocados a serviço das necessidades vitais.

Para muitos, esse desencanto está ligado a outros fatores, particularmente graves nos países em desenvolvimento, que contribuem com menos de 10% das despesas mundiais em P&D. Esses países viram surgir com a globalização, no rastro das privatizações e do liberalismo econômico, uma nova concepção da ciência – agora considerada uma mercadoria. Uma vez que se aplicam os critérios do mercado para orientar e avaliar a pesquisa, a ciência é cada vez menos considerada um bem público. Certos sinais evidentes demonstram que as pesquisas mantidas a serviço desse ideal estagnaram ou retrocederam. O que não deixa de causar sérios problemas a países em desenvolvimento como a Índia, onde o Estado garante mais de 80% do financiamento de P&D.

Os pesquisadores desses países, universitários ou não, têm a responsabilidade social fundamental de preservar a ciência dos interesses comerciais, estes baseados na idéia de que o conhecimento é um bem privado. Os Estados deveriam encorajar a ciência enquanto bem público até as sociedades terem absorvido os choques engendrados pelas forças do mercado.

Certos avanços científicos e tecnológicos vão de encontro a valores éticos largamente partilhados. A revolução da informação ameaça a vida privada; a revolução biológica poderia subverter a natureza humana e questionar a unicidade do indivíduo. Há inovações científicas e tecnológicas mais temíveis que outras. Os agricultores utilizam maciçamente pesticidas e herbicidas mesmo conhecendo os perigos que estes representam a longo prazo para o ser humano. Fazem-se experiências cruéis com animais, principalmente para avaliar os perigos de certas substâncias químicas. Como observou o indiano Kamla Chowdry, especialista em meio ambiente, as tecnologias desenvolvidas pelas grandes potências para as indústrias de armas, agroalimentares e de bens de consumo são portadoras de violência e ameaçam valores como compaixão, ajuda mútua, respeito e espiritualidade.

Novos mecanismos de decisão

As questões da eqüidade e do consumo sustentado estão estreitamente ligadas aos aspectos hegemônicos e violentos da ciência e da tecnologia modernas. Não se pode falar de desenvolvimento sustentado sem se refletir sobre os modelos de consumo das sociedades contemporâneas. O problema crucial é saber se os países desenvolvidos estão dispostos a diminuir seu consumo de energia não-renovável.

Essas reflexões conduzem sempre à mesma questão: que fazer para que a ciência e a tecnologia atendam às necessidades essenciais das sociedades, sobretudo nos países de baixa e média renda? Creio ser necessário desenvolver um processo democrático a fim de definir um novo contrato social entre ciência e sociedade. Para tanto, impõem-se quatro condições. Em primeiro lugar, o poder de decisão não deveria ser monopolizado por uma elite política e científica, com freqüência ligada aos interesses do setor privado. Os representantes de numerosos grupos de interesse, como os movimentos por uma ciência cidadã, e outros grupos de defesa dos direitos sociais, deveriam participar das decisões. A democracia não poderá funcionar se não trabalhar pelo bem-estar da população e se a distribuição da renda não for mais eqüitativa. Para democratizar o acesso às mudanças tecnológicas, é preciso criar novos mecanismos de decisão e elaborar redes de segurança. Por exemplo, sobre temas como a biodiversidade e a biotecnologia, as comunidades tribais isoladas dos países do Sul deveriam ser representadas no seio das comissões oficiais. Deve-se levar em conta seu ponto de vista para rever certos programas internacionais, sobretudo os que foram propostos pela Convenção das Nações Unidas sobre a Biodiversidade e pela Cúpula do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992. Nos países em desenvolvimento, onde as orientações das pesquisas seguem, sobretudo, as exigências e necessidades das elites privilegiadas, os governos devem estimular esses modos de decisão participativos. Eles deveriam ainda aumentar os orçamentos dos projetos de pesquisa ligados à segurança, sejam públicos ou privados.

O princípio de proximidade

Segundo imperativo: conscientizar as pessoas quanto aos possíveis impactos da ciência e da tecnologia sobre a vida, a fim de combater o determinismo tecnológico. Nesse nível, os grupos de militantes que se interessam pela ciência, como os existentes na Índia, têm importante papel a cumprir. Deveriam ser mantidos por seus governos.

Terceiro ponto: nos países em desenvolvimento, dever-se-ia perguntar por que as prioridades da pesquisa universitária são fixadas em função de problemas essencialmente ocidentais. A maioria das pesquisas é certamente importante para o avanço do conhecimento científico, mas não têm interesse imediato para os países em desenvolvimento. Enquanto isso, os laboratórios científicos e as universidades do Sul pouca atenção dão aos problemas que afetam diretamente seus cidadãos, como desnutrição, pobreza, poluição e riscos industriais. O efeito de proximidade deveria levá-los a dedicar parte de seus esforços a essas questões, em colaboração com especialistas das ciências sociais. Os representantes das comunidades locais poderiam muito associar-se a esse tipo de pesquisa, no âmbito de instituições conhecidas.

Os valores científicos e democráticos estão estreitamente ligados. Para se usufruir os benefícios da democracia, é preciso que os cidadãos desenvolvam uma consciência científica – incluídos o ceticismo, a dúvida, o rigor e revisem seu conceito de interesse público.

Fonte

KRISHNA, V.V. Uma ciência para os cidadãos. Caderno Unesco, FGV: São Paulo, jul. 1999.

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