sexta-feira, 11 de junho de 2010

Pavor e fascínio da cauda do Halley

Pavor e fascínio da cauda do Halley

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Em 1695, o astrônomo inglês Edmond Halley (1656-1742), ao aplicar a lei da gravitação universal de Newton, determinou a órbita do cometa de 1682, que já vinha sendo observado há pelo menos três séculos, mas cuja periodicidade não havia ainda sido determinada, e previu o seu retorno para 1759, o que realmente aconteceu. Desde então o cometa passou a ser denominado cometa de Halley. Diversos estudiosos, analisando os relatos de historiadores e cronistas, concluíram que sua passagem vinha sendo assinalada desde a mais remota antigüidade; seu registro histórico mais remoto datava de 467 a.C. No Brasil, a mais antiga observação do cometa foi a registrada em setembro de 1608, no Maranhão, pelo padre jesuíta português Luiz Figueira (1574-1643). Existem também registros de observações no Brasil, durante a aparição de 1835, em fins de outubro e em princípio de novembro daquele ano, pelo visconde de Araruama, José Carneiro da Silva (1788-1864).

Depois da previsão de Halley, mostrando que os cometas obedeciam às leis da física e sobretudo depois da confirmação de que o cometa que hoje leva seu nome voltaria de 76 em 76 anos, aproximadamente – acreditou-se que todo o temor em relação aos cometas deveria cessar numa civilização racional e tecnologicamente desenvolvida. Em conferência no Collège de France, por ocasião da aparição do cometa de Halley em 1835, o astrônomo francês Jacques Babbinet (1794-1872) afirmou...

Duvido muito que o cometa de Halley, em seu próximo retorno, em 1910, estimule ainda a imaginação popular.

Infelizmente, o que ocorreu foi exatamente o contrário. Ao ser anunciado que a Terra atravessaria a cauda do cometa, uma onda de pânico se estabeleceu entre os povos de todo o mundo. Para agravar ainda mais o pavor, os astrônomos anunciaram a descoberta de cianogênio – gás mortífero – na cauda do cometa, alguns meses antes da passagem da Terra pela cauda, prevista para 18/19 de maio de 1910. À medida que se aproximava esta data, nos jornais de todo o mundo sucediam-se as mais alarmantes notícias provenientes dos EUA e da Europa, informando que os gases letais da cauda provocariam o extermínio de toda a população do globo terrestre, bem como a própria destruição do planeta.

Também no Brasil se temia o fim do mundo, apesar do artigo do astrônomo francês Camille Rammarion (1842-1925), que desmentia a possibilidade dessa catástrofe, ter sido publicado em jornais cariocas. O próprio Henrique Morize, diretor do Observatório Nacional, procurou esclarecer à população em artigos no Jornal do Commercio. Tudo em vão. No dia 18 de abril, por exemplo, a cidade parou para observar o cometa que, à luz do dia, aparecia ameaçador nos céus cariocas. Os jornalistas subiram o Morro do Castelo à procura dos astrônomos. Estes informaram que o astro visível era o planeta Vênus, próximo de seu máximo brilho. No dia seguinte, no Correio da Manhã, um jornalista concluiu: E aí está como a deliciosa Vênus embrulhou o rabudo Halley. Astúcias de mulher!

No entanto, apesar dos equívocos e subseqüentes ironias jornalísticas, a passagem do Halley pela Terra em 1910 foi a mais espetacular do século. Realmente, nosso planeta atravessou a cauda do cometa, porém sem maior efeito que uma fraca luminescência no céu. Os astrônomos brasileiros Morize (1860-1930) e Costa (1882-1956) registraram suas impressões e determinaram a posição precisa do cometa em 1910, no morro do Castelo – atual Esplanada do Castelo –, onde estava instalado o Observatório Nacional do Rio de Janeiro.

Esse cometa foi reobservado em 1986, quando uma enorme propaganda anunciou-o como o cometa do século, apesar ter sido previsto que essa aparição seria mais desfavorável do que a anterior. De fato, em 11 de abril de 1986, quando se deu sua aproximação máxima em relação ao nosso planeta, o cometa se encontrava à distância de 63 milhões de quilômetros, quase três vezes superior à distância mínima na passagem anterior – 23 milhões do quilômetros em 19 de maio de 1910.

Sabe-se que a cauda de um cometa alcança a sua maior extensão no periélio – menor distância do Sol –, quando a atividade solar, agindo sobre o envoltório gasoso do núcleo, produz um aumento do seu brilho. Assim, é depois da passagem pelo periélio que os cometas se tornam mais belos e luminosos. Mas essa situação dura pouco: à medida que o cometa se afasta do Sol, começa a perder o brilho e sua cauda vai se reduzindo. Ora, em 1910 o cometa esteve próximo da Terra cerca de um mês depois do periélio – 10 de abril de 1910; em 1986, ele só esteve próximo da Terra em abril, dois meses depois do periélio – 9 de fevereiro de 1986. Por isso a passagem de 1986 foi muito inferior, em beleza, à do início do século.

Além de sua posição e do brilho reduzido em relação à aparição de 1910, o marketing e o sensacionalismo da mídia, estimulados por alguns astrônomos, contribuíram para provocar uma grande decepção junto ao público leigo. Na realidade, a importância da passagem de 1986 estava na qualidade dos resultados que poderiam ser – e foram – obtidos com os sofisticados experimentos conduzidos pelas sondas espaciais russas, japonesas e européia. Como se esperava, elas foram incomparavelmente superiores às observações realizadas com telescópios convencionais.

O grande espetáculo de 1986 foi dado pelos jornais e canais de televisão, através da divulgação das imagens geradas por cinco sondas espaciais: duas japonesas – planeta A e MS-T5 –, duas soviéticas – Vega 1 e 2 – e uma européia – Giotto. Enquanto as sondas Vega 1 e 2 passaram em 6 e 9 de março de 1986, respectivamente, a 8.890 e 8.030km do núcleo do Halley, obtendo imagens de baixa resolução através de câmaras de televisão equipadas com teleobjetivas especiais, a Giotto passou, em 14 de março de 1986, a 605km, transmitindo imagens do núcleo e da cabeleira interna do cometa, por intermédio de uma câmara de varredura construída para a ocasião.

As imagens soviéticas revelaram que o núcleo possuía a forma irregular de uma batata com 14km de comprimento, 7,5km de espessura e 7,5km de largura. Nessas imagens, o núcleo se apresentou muito escuro, com um poder refletor da ordem de 4%, em oposição à idéia de que o núcleo fosse muito brilhante por ser constituído de gelo em sua maior parte. Na realidade, o seu solo parece revestido de uma camada de carbono que envolve o gelo subjacente. Além de muito irregular, sua superfície apresentava colinas e vales, assim como estruturas anulares de 500 metros – verdadeiras crateras por onde escapavam jatos de gases e poeiras. Presumia-se que o núcleo, ao ser aquecido pela radiação solar, liberasse rajadas de matérias que alimentavam a cabeleira. Dessas emissões, limitadas ao hemisfério iluminado pelo Sol, só nove jatos foram detectados.

Apesar disso, novos modelos do interior do núcleo devem ser elaborados. O núcleo observado pelas sondas se apresentou muito poroso, pelo menos em determinadas regiões, com uma densidade média compreendida somente entre um décimo e um quarto da densidade do gelo. No estudo das emissões do núcleo, como se previa, verificou-se que os jatos eram dominados (80%) pelo vapor d'água. Na passagem da Giotto, o cometa emitia cinco vezes mais gás do que poeira. A produção gasosa foi estimada em 20 toneladas por segundo.

Antes da passagem das sondas acreditava-se que a poeira liberada pelo núcleo era semelhante à dos meteoritos rochosos, como os condritos carbonáceos. As análises forneceram resultado muito diferente: algumas poeiras apresentam composição próxima à dos silicatos terrestres e outras são constituídas principalmente de carbono (C), hidrogênio (H), oxigênio (O) e nitrogênio (N), donde a sigla CHON empregada para designá-las. Outra surpresa foi a abundância de partículas muito pequenas, com massa de 10-17 gramas.

As sondas permitiram finalmente um estudo minucioso da interação do cometa com o vento solar: a um milhão de quilômetros do núcleo, a Giotto já começou a registrar uma nítida perturbação no vento solar provocada pelo cometa. Depois de haver atravessado a cabeleira, os fluxos de poeira se tornaram menos homogêneos do que o previsto.

A observação astronômica na superfície da Terra, apesar de toda a evolução tecnológica nesse intervalo de 76 anos, não conseguiu competir com as imagens das sondas. No início do século, poucos ousariam imaginar sondas interceptando o Halley. E, seguramente, os avanços serão muito superiores em 2061, data da próxima aparição. Talvez seja possível observar o cometa mesmo em sua posição mais afastada da Terra, nos limites do sistema solar. Em 1910 foram os telescópios. Em 1986, as sondas. Como será no Terceiro Milênio?

Fonte

MOURÃO, Ronaldo Rogério de Freitas. Pavor e fascínio da cauda do Halley. O Globo. Rio de Janeiro, n. 5, 20 jun. 1999. Globo 2000, p. 106.

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