Questões tecnológicas na sociedade do (des)conhecimento
A vontade de dominar o conhecimento acompanha a trajetória humana. Nossos ancestrais bíblicos foram expulsos de seu hábitat original justamente pela atração fatal que lhes causou a aquisição do conhecimento – da’at tov vará –, materializado em uma particular árvore do Jardim do Éden.
Em parcela expressiva de seus diálogos, Platão buscava compreender a natureza do conhecimento – episteme. A fé hindu percebia o conhecimento – jnana – como uma das três vias de acesso à divindade. A presença do conhecimento na história humana vai mais além das idéias e crenças.
Na sua obra sobre a riqueza e a pobreza das nações, David Landes, professor emérito de história e economia da Universidade de Harvard, mostra de forma convincente que, nos últimos 600 anos, é a existência de uma sociedade aberta focalizada no trabalho e no conhecimento que explica porque alguns países ficaram muito mais ricos do que se poderia esperar a partir de suas dimensões ou de seu poder militar.
Hoje percebemos com clareza que o conhecimento constitui o eixo estruturante do desempenho de sociedades, regiões e organizações. Difundem-se expressões que incorporam esse termo – sociedade do conhecimento, economia baseada em conhecimento, redes de conhecimento e trabalhadores do conhecimento – também chamados analistas simbólicos –, entre outras. Elas refletem a constatação de que a gestão competente do conhecimento é determinante da capacidade das sociedades, regiões, organizações e pessoas lidarem com o ambiente em acelerada transformação e crescente complexidade que caracteriza a passagem do milênio – pelo calendário ocidental.
Tecnologia, conhecimento e desenvolvimento
Aprimorar as competências de gestão do conhecimento é vital para os países que aspiram a acelerar o ritmo e aumentar a eqüidade do seu processo de desenvolvimento sustentável. O Relatório do Desenvolvimento Mundial de 1998-99 do Banco Mundial, que tem o sugestivo título de Conhecimento para o Desenvolvimento, é incisivo em indicar que países pobres – e pessoas pobres – diferem dos ricos não apenas por disporem de menos capital, mas também por terem menos conhecimentos.
São identificadas ali duas classes de conhecimento e dois tipos de problemas que são críticos para os países
Essa assimetria tende a crescer. Em parte, porque a fluidez com que as tecnologias atravessavam fronteiras tem-se reduzido com a mundialização. Empresas de países centrais já não estão mais dispostas a repassar o seu melhor conhecimento para as empresas dos países periféricos, mesmo que por um preço razoável, pois consideram tais países como seu mercado potencial direto.
Nesse contexto, o complexo tema da proteção do trabalho intelectual passou a ser tratado de forma cada vez mais reducionista, com viés predominantemente comercial. Situação que é agravada pela subordinação dos contenciosos às pressões de interesses empresariais e nacionais hegemônicos, pouco sensíveis até mesmo à miséria humana, como se percebe no momentoso caso do licenciamento internacional de tecnologias protegidas para a produção do coquetel anti-AIDS.
A mundialização vem contribuindo, portanto, para uma distribuição desequilibrada dos conhecimentos tecnológicos. No caso das tecnologias de informação, os fatores lingüístico e cultural decorrentes da concentração de interesses e competências em um só país se somam a diversos outros, causando um alargamento paulatino da ‘brecha digital’.
A segunda categoria focaliza os conhecimentos sobre atributos, tais como a qualidade de um produto – bem ou serviço –, a diligência de um(a) trabalhador(a) ou a credibilidade de uma organização. São esses problemas de informação, cuja resolução envolve mecanismos institucionais idôneos para a disponibilização de serviços tecnológicos, tais como os de normalização, certificação e avaliação.
Tecnologia, conhecimento e desconhecimento
O conhecimento tem, como contraponto, múltiplas categorias de desconhecimento. Há, evidentemente, o desconhecimento por ignorância, que afeta parcelas significativas das populações em quase todos os países. Esse é reparável, em grande parte, pela melhoria do acesso à informação e ao desenvolvimento de competências nos códigos – lingüísticos, telemáticos e operativos – que permitem localizar as fontes, bem como qualificar e tratar a informação. Requer-se, para tanto, acessibilidade melhorada ao ensino formal e informal de boa qualidade – tanto para crianças e jovens como para pessoas adultas, no conceito de aprendizagem permanente.
A convergência das novas tecnologias multimídia e telemática, se adequadamente aplicadas à mediação do processo de ensino-aprendizagem, certamente pode contribuir para a universalização das oportunidades de crescimento da bagagem intelectual requerida para os cidadãos e cidadãs que pretendem adentrar e se manter na sociedade do conhecimento.
Todavia, há outras categorias de desconhecimento, igualmente preocupantes, capazes de afetar mesmo as pessoas que tiveram acesso privilegiado ao sistema educacional, cursando instituições de ensino superior diferenciadas. Uma dessas categorias de desconhecimento está relacionada menos à falta de informação ou de tecnologia do que à sensibilidade adormecida das elites.
É o caso do desafio da inclusão social. Há informações detalhadas sobre as agruras de outros seres humanos, inclusive em nosso meio próximo, que moram em sub-habitações, são fugitivos de regiões conflagradas ou apresentam algum tipo de desvantagem de condições de sobrevivência no modelo sócio-econômico baseado na competitividade.
As políticas e práticas prevalecentes fazem com que os conhecimentos tecnológicos sejam então direcionados pelos governos e pelos segmentos privilegiados da sociedade do desconhecimento menos para atenuar as causas e conseqüências da exclusão do que para aumentar a altura de muros – concretos ou virtuais – e incrementar a sofisticação de sistemas de controle de acesso nas fronteiras, residências, locais de trabalho e centros de cultura e lazer. Restaura-se, em versão pós-moderna invertida – os excluídos e excluídas ficam do lado de fora –, a figura histórica do gueto, que marcou por séculos a paisagem urbana européia moderna.
Há que reconhecer, em contrapartida, a emergência e disseminação do Terceiro Setor, que congrega as entidades de caráter privado que desenvolvem trabalhos de utilidade pública. Têm sido elas capazes de, crescentemente, mobilizar conhecimentos tecnológicos, levantar recursos financeiros e canalizar as energias criativas de pessoas e organizações dispostas a participar ativamente em processos que visam a inclusão social dos segmentos excluídos por fatores tais como gênero, idade, cor, etnia, deficiência, condição econômica e convicções religiosas ou políticas.
Outra categoria de desconhecimento está associada ao não reconhecimento da natureza do empreendimento científico-tecnológico por pessoas educadas segundo seus princípios. Esse desconhecimento se manifesta de formas antípodas, ambas com forte carga ideológica. Por um lado, ocorre o endeusamento da ciência e tecnologia, em que se constrói uma imagem de que elas são capazes de prover os conhecimentos capazes, não apenas de acabar com os males da humanidade como, também, de oferecer uma antecipação dos prazeres do paraíso celestial. São estes materializados nos centros de compras virtuais, em que se pode adquirir de tudo – inclusive serviços eróticos, drogas e informações sobre como construir bombas mortíferas – a qualquer momento – no jargão publicitário, ‘24x365’ – e de qualquer lugar. Naturalmente é desejável, para satisfazer os desejos e pulsões, possuir pelo menos um cartão de crédito válido.
Sacerdotes do estamento científico-tecnológico desconhecem, muitas vezes, a variedade e intensidade de efeitos deletérios do seu conhecimento. Entre eles está a redução da biodiversidade ambiental e cultural – esta simbolizada pela extinção de centenas de idiomas, incapazes de se manter por falta de densidade populacional, num ambiente cada vez mais conectado pela teia mundial – conhecida pelo acrônimo
No plano microcósmico, ocorre o desconhecimento generalizado das rupturas psicológicas de jovens e adultos, incapazes de lidar com a elevada taxa de mudança introduzida pela mundialização nos espaços econômico, social e cultural. Essa incapacidade, agravada pela insensibilidade dos arautos da modernidade aos saberes e práticas tradicionais, levam às drogas, ao terrorismo e, não com pouca freqüência, ao suicídio.
O contraponto à santificação retromencionada é a demonização do conhecimento científico-tecnológico no mundo ocidental em pleno século XXI. Ela é exemplificada pela recente incursão, amplamente divulgada, que destruiu, pela força bruta, estações de pesquisa biotecnológica vegetal no Brasil. Foi ela comandada por um histriônico cidadão e morador de país rico que, curiosamente, é filho de um cientista destacado, que contribuiu para colocar a genômica brasileira na vanguarda internacional.
A dramaturgia neoludita foi estimulada pela condição do comandante da invasão ao laboratório científico a céu aberto de ter sido convidado especial do Fórum Mundial de Desenvolvimento Social. Esse evento foi co-patrocinado por um jornal, publicado em seu próprio país, que se especializa em assuntos das relações internacionais.
Verifica-se nesse episódio um desconhecimento aparente tanto da natureza do processo de gestação do conhecimento científico e da sua necessária refutabilidade, como do casamento de interesses entre o bloqueio ao avanço da ciência e o protecionismo do setor agrícola de países ricos.
Essa crítica não reduz a legitimidade do questionamento do investimento que, nesse caso, o empreendimento científico-tecnológico faz não para promover mas sim para evitar a mudança. Tal esforço é polarizado por uma grande multinacional, que pretende disseminar plantas geneticamente modificadas, que lhe permita preservar o mercado para seus produtos pesticidas tradicionais.
Tecnologia, conhecimento e informação
A importância do conhecimento na sociedade contemporânea tem levado governos de diversos países a torná-lo um dos eixo diretores de sua visão de desenvolvimento. Esse é o caso do Brasil, que incluiu Informação e Conhecimento como uma das seis áreas que abrigam os programas finalísticos do seu plano estratégico plurianual 2000-2003, cognominado Avança Brasil.
A condição necessária, ainda que não suficiente, para a constituição de uma sociedade do conhecimento é a existência de uma infra-estrutura informacional ampla e de boa qualidade. Essa percepção levou o Governo do Brasil a criar, no âmbito de seu Ministério de Ciência e Tecnologia, o Programa Sociedade da Informação - SocInfo. Ele constitui um conjunto de iniciativas coordenadas das esferas governamental federal, estadual e municipal, junto com a iniciativa privada, para viabilizar um novo estágio de evolução da Internet e suas aplicações, tanto na capacitação de pessoal para pesquisa e desenvolvimento quanto na garantia de serviços avançados de comunicação e informação.
Com investimentos previstos de cerca de 2 bilhões de euros em quatro anos, tem por meta criar as bases para que aumente substancialmente a participação da economia da informação no Produto Interno Bruto, estimada no início do Programa em 10%. Pretende, outrossim, disseminar o uso do computador em todo o território nacional, contribuindo para reduzir as desigualdades sociais e regionais.
O Programa Sociedade da Informação brasileiro está estruturado em oito linhas de ação e em nove áreas de atuação. As linhas de ação indicam a direção dos projetos: pesquisa e desenvolvimento em tecnologias-chave; prototipagem de aplicações estratégicas; implantação de infra-estrutura avançada para pesquisa e ensino; fomento a informações e conteúdos; fomento a novos empreendimentos; apoio à difusão tecnológica; apoio a aplicações sociais; e governança no mundo eletrônico.
Já as áreas de atuação estabelecem um conjunto de objetivos globais, com prioridade para ciência e tecnologia, educação e cultura, considerados indutores dos demais. Os objetivos estão resumidos a seguir.
1 – Ciência e tecnologia – colaboração e condução de experimentos cooperativos e disseminação de informação científica e tecnológica.
2 – Educação – educação à distância de qualidade e bibliotecas temáticas digitais.
3 – Cultura – criação e difusão cultural, com ênfase nas identidades locais, seu fomento e preservação.
4 – Saúde – protótipos de serviços de referência em atendimento, telemedicina e de informação em saúde.
5 – Aplicações sociais: mundo virtual como habilitador de competências e participação social.
6 – Comércio eletrônico: ambientes de comércio eletrônico e transações seguras pela rede.
7 – Informação e mídia: meios, processos e padrões para publicação e interação; propriedade intelectual e negócios do conhecimento.
8 – Atividades de governo: integração e maximização de ações públicas para a cidadania; transparência das ações e melhoria da qualidade dos serviços.
9 – Educação para a sociedade da informação: treinamento e formação tecnológica e popularização da cultura digital.
Outro marco para a democratização das oportunidades na base informacional requerida pela sociedade do conhecimento no Brasil é a instituição, no segundo semestre de 2000, do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações – FUST. Será ele alimentado por diversas fontes, principalmente por uma contribuição de 1% sobre a receita operacional bruta decorrente da prestação de serviços de telecomunicações nos regimes público e privado. Disporá, assim, de importante volume regular de recursos, que serão aplicados em programas, projetos ou atividades que contemplem, entre outros, os objetivos a seguir.
1 – Implantação de acessos individuais para prestação do serviço telefônico e para utilização de serviços de redes digitais de informação destinadas ao acesso público, inclusive da Internet, em condições favorecidas; elas focalizarão estabelecimentos de ensino, bibliotecas e instituições de saúde, beneficiando em percentuais maiores os estabelecimentos freqüentados por população carente.
2 – Instalação de redes de alta velocidade, destinadas ao intercâmbio de sinais e à implantação de serviços de teleconferência entre estabelecimentos de ensino e bibliotecas.
3 – Fornecimento de acessos individuais e equipamentos de interface a deficientes carentes e a instituições de assistência a deficientes.
Conhecimento, desconhecimento e universidade
A possibilidade de desconhecimento pelas elites formadas nas universidades é apontada por Jacques Marcovitch, atual Reitor da Universidade de São Paulo – USP.
É corriqueiro ver o aluno, enquanto universitário, extremamente solidário com os excluídos, para depois tornar-se dirigente de uma grande empresa e agir de forma oposta. Ali, vivendo nova cultura e desvinculado da cultura da universidade, ele pode passar a ser um reforçador da exclusão. A questão da exclusão e a questão da empregabilidade serão facilitadas quando se entender como comunidade universitária a comunidade alargada, incluindo os ex-alunos, e dela fazendo um espaço formulador de alternativas. O ex-aluno, articulado com aqueles que vivem a universidade de hoje, pode trazer algo de extremamente benéfico para a reflexão em torno desse tema.
A universidade brasileira dispõe de competência instalada para realizar uma ampla gama de programas mobilizadores em torno das questões sociais. A USP tem realizado iniciativas nessa direção. Cabe destacar as ações que resultaram na elaboração de um documento sobre as condições de vida do brasileiro afro-descendente, hoje incorporado ao projeto nacional em fase de estudos pelo governo da União.
A responsabilidade pelo benefício social do conhecimento, contemplada na dimensão da extensão universitária, que integra a sua missão tríplice, está expressa no conceito de universidade conectada e explícito nos textos de dirigentes das universidades públicas de pesquisa, tais como os seguintes...
A exclusão social é o maior problema da sociedade moderna, principalmente em nosso país. Não há como a universidade furtar-se ao debate dessa questão. (...) Cristovam Buarque, em seu livro A aventura da universidade, aponta várias questões cruciais da vida acadêmica. (...) O livro do ex-reitor da Universidade Nacional de Brasília é um referencial para a discussão de alguns pontos, entre os quais, por exemplo, o acesso ao ensino superior. Ele fixa, nessa direção, este conceito: ‘O que faz a universidade elitista não é o fato de que alguns pobres não terão filhos médicos, mas o fato de que os pobres não terão médicos para seus filhos’. (...) Na questão da exclusão social, uma primeira mensagem que a universidade tem que deixar muito clara é a do compromisso social amplo e permanente. (...) a universidade tem, simultaneamente, um compromisso com a coesão social e outro com a excelência.
Para atestar a consistência da prática da Universidade com essa mensagem de compromisso social, encontra-se disponível na Internet um catálogo denominado A USP frente ao desafio da inclusão social, expondo centenas de iniciativas regulares e permanentes nesse sentido.
Tecnologia, conhecimento e cooperação
O caminho do conhecimento não é trivial. A sabedoria hinduísta o apresenta com três portais – termo que ganha novo significado no ambiente contemporâneo da Internet –, pelos quais se tem que ingressar e caminhar. Cada um deles possui um guardião, uma divindade de aspecto duplo – um diabólico e outro angelical – simbolizando a natureza similar das características dificultadoras e facilitadoras do desenvolvimento pessoal.
Em um outro portal, o do templo de Apolo em Delfos, local simbólico da prospecção sobre o porvir, encontra-se uma frase grega que indica um pré-requisito específico para acesso ao conhecimento: conhece-te a ti mesmo.
A questão de como realizar o auto-conhecimento ali preconizado foi elaborada, séculos depois, pelo filósofo judeu Martin Buber: não há EU em si, mas apenas o EU da palavra-princípio EU-TU e o EU da palavra-princípio EU-ISSO. Esta diz respeito ao mundo como experiência, enquanto a primeira fundamenta o mundo da relação, da reciprocidade. A ambivalência dos guardiães dos portais hinduístas e, em particular, a reflexão de Buber nos permitem ter uma percepção importante sobre a natureza da bissecção conhecimento/desconhecimento, que perpassa o presente trabalho.
O conhecimento é ensejado pelo estabelecimento de relações de cooperação entre entes – pessoas ou organizações – que se reconhecem distintos, mas que percebem o potencial de desenvolvimento existente numa relação marcada pela reciprocidade. É esta a base para alguns dos arranjos mais frutíferos na sociedade do conhecimento: as comunidades de aprendizagem, as comunidades de praticantes de uma determinada tecnologia, as relações entre os atores dos sistemas nacional e local de inovação tecnológica – tais como a cooperação empresa-universidade-governo – e a cooperação científica, técnica e tecnológica internacional.
O desconhecimento, por sua vez, resulta do tratamento dos interlocutores não como potenciais parceiros, mas como objetos a serem explorados oportunisticamente, a partir dos quais se pode obter vantagens unilaterais. A cooperação internacional ‘de fachada’ é uma ilustração dessa relação espúria.
O diálogo franco entre entes informados e cônscios de sua identidade é, por conseguinte, a chave para uma cooperação que permita compartilhar, com benefícios recíprocos, os conhecimentos estruturados e tácitos de cada ser, nação e cultura.
Fonte
PLONSKI, Guilherme Ary. Questões tecnológicas na sociedade do (des)conhecimento. Disponível em:
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